TwitterLinkedinWhatsAppTelegramTelegram
0

Caso clínico: Intoxicação com cianeto

A explorações são locais propícios à ocorrência de intoxicações por gases. Neste caso houve uma intoxicação por cianeto

2 Novembro 2009
TwitterLinkedinWhatsAppTelegramTelegram
0

Descrição da Exploração



A exploração é um ciclo fechado de 600 porcas situado numa comarca de Lérida de alta densidade suína.

A exploração é de produtividade elevada com maneio semanal e desmame aos 21 dias.

Está dividida em duas fases, praticamente independentes:

-Fase I e II: 600 porcas e 1.200 lugares de leitões (15 kg peso).

-Fase III: 5.000 lugares de engorda a uns 800m de distância.

Na fase I e II os animais alimentam-se com alimentação convencional (ração seca) enquanto que na fase III se aplica um sistema de alimentação líquida.




Estatuto sanitário



Sanitariamente, no momento de aparecimento do caso clínico, a exploração era:

- Negativa à Doença de Aujeszky

- Positiva a PRRS na fase I e fase II

- Positiva a Mycoplasma hyopneumoniae

- Positiva a Lawsonia intracellularis


Aparecimento do Caso



Em finais de Fevereiro de 2006 o tratador chama o veterinário alarmado pela sintomatologia que apresentavam os porcos de um módulo de engorda em concreto. Segundo ele, os animais estavam muito apáticos, não comiam e custava-lhes respirar.

A engorda divide-se em 11 módulos de 450 animais cada um. Os animais afectados estavam no módulo 3 e tinham umas 15 semanas de vida.


Visita à Exploração



Os porcos afectados pesavam cerca de 40 kg. À visita do veterinário os animais apresentavam um quadro respiratório grave com:

· Marcada dispneia

· Orelhas cianóticas

· Apatia

· Atordoamento geral

· Prostração

· Animais esbranqueados

Os animais estavam prostrados em posição de cão sentado, custava-lhes moverem-se.


Fotos 1 e 2: Detalhes de orelhas arroxeadas.

A morbilidade da doença era elevada dentro do módulo 3 (80%) ainda que não a mortalidade (<2%). Os outros módulos, onde os animais eram de maior ou menor idade, não estavam afectados.


Fotos 3 e 4: Parques afectados.


Hipóteses



Na primeira visita à exploração o veterinário não realizou nenhuma necropsia e suspeitando de um processo pulmonar grave, decidiu medicar os animais com um antipirético e 200 ppm de Doxiciclina na água de bebida durante 5 dias.


Provas de Diagnóstico



Aos 2 dias de tratamento a aparência e a apatia dos animais não tinham melhorado nada ainda que continuava sem haver baixas.

Foram sacrificados 4 animais. Não se observou nenhuma lesão macroscópica à necropsia. Ainda assim, em 2006 o problema grave do Circovirus fez pensar o clínico de um processo viral e decidiu-se por realizar um seroperfil da engorde e a tomada de amostras de gânglios e tecidos diana do vírus e de outros vírus respiratórios como o PRRS.

· Seroperfil e PCR frente a virus PRRS/Circo. Demonstraram uma seroconversão destes animais durante este momento da engorda com isolamento de vírus PPRS por PCR.

· Histopatologia. A ausência de lesões tissulares foram chave para redireccionar o diagnóstico da doença.


Diagnóstico diferencial



Num primeiro momento acreditou-se que se tratava de um quadro agudo pulmonar mas a ausência de febre e a ausência total de lesões tanto na necropsia como histopatológicas, cardíacas ou pulmonares, fez suspeitar de quadro tóxico ou intoxicação como causa primária da hipoxia dos animais.

Devido ao sistema de alimentação utilizado, suspeitou-se de uma intoxicação alimentar. Esta exploração utilizaba um sistema de alimentação líquida com vários subproductos da indústria alimentar.



Nesse momento o proprietário estava a dar 4 tipos de rações, segundo a idade dos animais, compostas por diferentes subprodutos e arraçoamentos, tal e como se descrevem na tabela 1.

Tabela 1: Rações de alimentação líquida segundo intervalo de pesos.

Intervalo de pesos, kg 18-23 23-70 70-100
Ração 1 Ração 2 Ração 3
MS % % %
Concentrado 1 50.0 0.0 0.0
Concentrado 2 0.0 22.0 20.0
Iogurte 16.5 10.0 8.0
Batatas cruas - 3.0 7.0
Bagaço de amêndoa 12.0 10.5 6.5
Soro leite 6.5 6.5 6.5
Pão 15.0 48.0 52.0
TOTAL 100 100 100

Ante a suspeita de uma intoxicação através da ração e enquanto se analizavam os diferentes componentes, decidiu-se dar ração e água ao módulo afectado. Os animais melhoraram rapidamente.


Diagnóstico



Para determinar de que tipo de intoxicação alimentar se tratava, decidiu-se procurar compostos cuja intoxicação fosse consentânea com hipoxia e fosse possível encontrar nos subprodutos devido à sua procedência ou processos de obtenção.

Procuraram-se três compostos nos diferentes componentes da sopa:

· Nitratos

· Nitritos

· Ácido cianhídrico

Os resultados resumem-se na tabela 2.

Tabela 2: Resultado das análises de ácido cianhídrico, nitratos e nitritos em vários componentes da ração.

Ácido cianhídrico, nitratos e nitritos, ppm
Ac Cianhídrico Nitratos Nitritos
Subproduto de panificação < 10 < 10 < 10
Pré mistura Bag. amêndoa + soro < 10 < 10 < 10
Bagaço amêndoa seca L2 33 < 10 < 10


Conclusões e Resolução do Caso



Tendo em vista os resultados das análises, diagnosticou-se uma Intoxicação subaguda por ingestão de cianeto procedente da torta de amêndoas.

O cianeto procedia de amêndoas amargas. Contactou-se com o fornecedor da torta de amêndoa e confirmou-se que tinha recebido certos lotes de amêndoas amargas. Esta indústria extraía o óleo das amêndoas para uso industrial e o bagaço destinava-se a alimento para porcos.

O ácido cianhídrico é um potente inibidor da respiração mitocondrial.

Ainda que se tenha demonstrado que os porcos podem chegar a tolerar certas quantidades de cianeto na sua dieta (Uso de raízes de yuca para porcos: factores anti nutricionais. J. Ly. Instituto de Investigações suínas. Havana, Cuba) a capacidade de detoxificação tem um limite, a partir do qual se produz a intoxicação.

A dose letal para uma pessoa adulta foi descrita em 50-60 mg/kg de ácido cianhídrico e 1.5-5 mg/kg para uma criança. (Ryczel, Mirta Elena, 2007). Os níveis de cianeto encontrados nas análises não foram elevados mas seriam suficientes para causar uma intoxicação crónica em animais jóvens. Ainda assim torna-se difícil fazer uma amostra representativa do bagaço de amêndoa, já que o mesmo é sujeito a uma grande variabilidade.



Em algum momento o conteúdo em cianeto podia ter sido muito mais elevado.

A explicação do porquê de os outros módulos não terem sido afectados estaria em que por kg de peso vivo os animais do módulo 3 comiam a percentagem mais alta de bagaço de amêndoa e em consequência de HCN. Ainda que na ração 1 a % de amêndoa era algo maior, os porcos de 40 kg têm um consumo mais elevado que resultaria numa maior ingestão de HCN.

Quando se substituiu a sopa por água e ração, os animais melhoraram rapidamente. Voltou-se a fornecer a sopa sem o bagaço de amêndoa e os animais continuaram sãos. Os outros módulos continuaram sem ser afectados.


Comentários


O cianeto é um composto natural que se encontra em bactérias, fungos, algas e plantas. Costuma encontrar-se sob a forma de glucósidos cianógenos mas liberta-se o ácido cianhídrico mediante hidrólise ácida ou enzimática. Este é um poderoso inibidor da respiração mitocondrial.

A intoxicação costuma ser mais frequente em ruminantes que pastam em prados ricos em plantas cianóticas. É por esta razão que a referida intoxicação foi descrita em ruminantes mas não em suínos. A dose letal para vacas e ovelhas foi descrita em 2 mg/kg de peso corporal de HCN. (Casarett and Doull’s.Toxicology: The basic science of poisons. Otto M. Radostits et al. Medicina veterinaria. Tratado de las enfermedades del ganado bovino, ovino, porcino, caprino y equino. Vol. 2. 1893-1895,1913,1906- 1909)

O antídoto nas intoxicações por cianeto nos ruminantes é o tiosulfato sódico ou a sua combinação com nitrito sódico.

As expplorações que utilizam um sistema de alimentação líquida com a incorporação de subprodutos das diferentes indústrias estão mais expostas às intoxicações alimentares que as que usam um sistema convencional de alimentação em seco. Espanha é um País onde a alimentação líquida e a utilização de certos subprodutos industriais é de recente utilização na produção suína. Isto comporta certas dificuldades que outros Países com mais tradição neste tema já superaram, por exemplo a falta de tratamentos por parte da indústria a certos subprodutos para os estabilizar e estandartizar. a variabilidade existente hoje entre lotes de um mesmo subproduto pode ser muito grande e a qualidade destes subprodutos muitas vezes deficiente.

Pelo contrário, estas explorações costumam ter uns custos de alimentação muito baixos que faz com que sejam muito competitivas na actualidade do sector suíno.

Comentários ao artigo

Este espaço não é uma zona de consultas aos autores dos artigos mas sim um local de discussão aberto a todos os utilizadores de 3tres3
Insere um novo comentário

Para fazeres comentários tens que ser utilizador registado da 3tres3 e fazer login